A gênese
sócio-econômico-cultural do gaúcho está visceralmente associada às vísceras de
animais vacuns, carneados e coureados, após serem caçados na extensão sem
aramados dos campos do Pampa. O charque, o couro, o sebo são substantivos
indissociáveis a esse tipo humano que, naqueles tempos idos, era sinônimo de
gaudério que, por sua vez, era sinônimo de vagabundo, ladrão, parasita.
A relação do gaúcho campeiro não raro é cantada
como sendo desarmônica no tocante aos animais com os quais convive, dado,
talvez, ao viés utilitário que a racionalidade humana dirige aos mesmos, seja
em se tratando do cavalo (veículo de locomoção e de tração e instrumento de
competição), do vacum (produto de consumo, tração e comércio), do cachorro
(ajudante nas campereadas), do gato (caçador de ratos nos paióis de milho e
moradias).
Mas quem
buscar na literatura oral, musical e bibliográfica do Rio Grande do Sul terá
felizes surpresas ao se defrontar com evidentes sentimentos de compaixão
dedicados pelos seres humanos aos animais.
Um exemplo
está no conto “Boi Velho”, de autoria de João Simões Lopes Neto, o qual faz
parte da obra “Contos Gauchescos”. Na vasta obra de Barbosa Lessa também se
encontram imagens que expressam amor aos animais, mesmo quando o relato tende
ao pitoresco como, no conto "Queimadores de Campo", de Barbosa Lessa,
publicado, inicialmente, no seu livro “O Boi das Aspas de Ouro” e, recentemente,
na derradeira obra "Histórias para sorrir" (Editora Alcance, 2005).
O conto “A
Cidade”, também de Barbosa Lessa, incluída no livro “Rodeio dos Ventos”, que já
integrava o citado livro “O Boi das Aspas de Ouro”, é outra prova da
valorização dos animais, tanto que o cusco Mosquito é a personagem principal e,
certa vez, movido pela curiosidade, resolve seguir seu dono a cavalo e juntos
entram na cidade que para ele era um mundo desconhecido. Quem desvenda os
mistérios daquele núcleo urbano é o cusco e pelas informações que chegam ao
leitor, sugeridas pelo belo texto, a cidade é, sem dúvida, a histórica
Piratini.
Na
discografia gaúcha, podemos lembrar: “O boi é bicho mas tem alma sob o couro”,
um verso de José Hilário Retamozo na obra musical “Poncho Molhado”, verdadeiro
clássico nativista; "Matança” (de José Cláudio Machado), uma música que
denuncia a venda de cavalos velhos para os matadouros; “Florêncio Guerra e seu
Cavalo” (versos de Mauro Ferreira musicados por Luiz Carlos Borges) fala da
tristeza do peão ao ser obrigado pelo patrão a matar o cavalo de sua confiança,
onde a comoção do empregado rural é tanta que comete suicídio logo após
apunhalar seu amigo.
Embora a
visão antropocêntrica ainda pareça imperar com vigor, vislumbra-se um
crescimento de uma consciência acerca dos direitos dos animais, tanto pelos
noticiários nos grandes meios de imprensa, quanto pelo crescente número de
páginas virtuais dedicadas ao tema. É uma perspectiva que se abre para que os
humanos se enxerguem não como superiores aos demais seres mas, sim, como habitantes
deste planeta Terra, com deveres de respeitar a diversidade biológica,
inspirados em valores éticos e ecológicos. Nesse contexto está, obviamente, o
gaúcho que não poderá fugir desse sentimento global, nem que para isso tenha de
revisar suas “tradições”.
JUAREZ
MACHADO DE FARIAS
Advogado e Radialista.
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